Está a Páscoa à porta, e com ela a Semana Maior, a abrir com os Ramos e a atingir o seu clímax no Tríduo Pascal. Na imprensa e nas bocas vamos mais uma vez ouvir falar de cerimónias, palavra que a semântica tornou horrorosa e insignificante, coisa que já não gostamos de fazer uns com os outros, mas que insistimos em fazer na Igreja. De facto, quem não tem mais nada que fazer e é obrigado a fazer alguma coisa, faz cerimónia… insuportável aos homens e detestada por Deus. “Quando vindes apresentar-vos diante de mim, quem vos pediu que viésseis calcar os meus átrios? Festas, sábados, ajuntamentos, já não suporto mais falsidade e solenidade. As vossas festas e ajuntamentos eu detesto do fundo da alma!” [Isaías 1, 12-14]. Quem disse que as tentações formalistas ficaram para sempre arrumadas no Antigo Testamento? O aviso de Jesus aos Apóstolos: “Cuidado com o fermento dos fariseus!”, não tem cabimento nos nossos dias? Aquilo que nós acumulamos em formas, fórmulas e cerimónia diminui a nossa capacidade celebrativa.
E preciso dizê-lo com toda a franqueza. Quem não tem, ou ainda não tem, razões pastorais para celebrar a Páscoa, talvez seja melhor celebrar simplesmente a Eucaristia com os elementos pascais inerentes, limitando a ‘actio’ de Sexta-feira Maior às leituras e à adoração da Cruz, e a Vigília Pascal ao esquema eucarístico. Se nada aconteceu, ou nada se fez acontecer em termos catecumenais ou catequéticos, penitenciais ou comunitários, a assumir pela Páscoa de Cristo e a celebrar em Igreja, então basta ficar-se pela função memorial da Liturgia, sem mais… cerimónias!
É que a celebração anual da Páscoa, desde a abertura da Quaresma ao Pentecostes, tem a sua história que não interessa arquivar, mas continuar em trabalhos pastorais e em frutos dos trabalhos pastorais, numa Igreja que cada ano se enriquece de novos convertidos e lhes celebra o ingresso, ou o regresso e/ou o progresso. Os trabalhos apostólicos e pastorais ou encontram na Liturgia o seu lugar, o seu modo e os seus tempos, ou então as nossas celebrações não passarão de cerimónias a dizer o que não fazemos, a fazer o que não somos.
Nós sabemos a insistência que o Vaticano II pôs nas preparações e disposições necessárias à participação ativa e consciente na Liturgia. O que mais impressiona e escandaliza nos dias de celebração da Páscoa não são as igrejas vazias e as ruas cheias de folclore rodeando os passos do Senhor. O que mais choca é o ar tão pouco esclarecido e pouco convencido com que as nossas assembleias assistem ou participam na Semana Santa. Acender o Fogo na noite mais clara que o dia? Porquê? A comunidade que o faz tem razões para o fazer? Para lembrar o Cristo? Mas o Cristo não veio trazer o fogo à Terra para fazermos uma cerimónia. Fê-lo para nos pegar o Fogo! Num contexto pastoral morno, o Fogo nunca se pega. É mais interessante o fogo aceso pelos escuteiros para celebrar a sua amizade! Tem mais sentido pastoral João Paulo II, ao sugerir colocar-se o Dia Mundial da Juventude no Domingo de Ramos. Em vez duma cerimónia rotineira, o entusiasmo dos jovens de ramos na mão aclamando o Cristo que lhes traz algo de novo numa Cidade onde eles, como Cristo, não têm lugar.
O pior de tudo são as habituações. As virtudes são hábitos, bons hábitos. Mas quando criam habituação já não têm mais força para pôr atos e escrever atas de Vida, nem capacidade para progredir no Caminho.
Havemos de falar de Péguy, um poeta, poeta e cristão, que não escreveu versos para se divertir e que nunca foi fingidor. Hoje Péguy nos ajudará a descascar o verniz que não garante pastoralmente e sacramentalmente nem significância nem eficácia: “Piores do que os maus pensamentos são as ideias-feitas. Pior do que uma alma má e mesmo do que uma alma que quer ser má, é um alma fabricada. E há pior do que um alma perversa: a alma habituada. As artes fabulosas da Graça podem conquistar uma alma má e mesmo uma alma perversa, salvando-se o que parecia perdido. Mas nunca se humedeceu o envernizado, se atravessou o impermeável, se converteu o habituado… As ideias-feitas como as almas-habituadas não foram golpeadas. A sua epiderme de moral perfeitamente intacta segrega-lhes um coiro firme e uma couraça sem defeito. E não se lhes vê a fenda de uma ferida atrás duma desgraça sem remédio, de um invencível desgosto, ou então um ponto de sutura eternamente frágil, uma inquietação mortal…” [Charles Peguy, 1935].


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 18 | Voz Portucalense, 6 de março de 1986

Pintura: “O Sepultamento de Cristo” [1603-1604] | Caravaggio [1571-1610]