Foi muito cedo que o Evangelho penetrou em África. O próprio Jesus, ainda menino de colo, passando ao Egito, ali foi um refugiado… político! E todos os indícios convergem para confirmar que foi da África que a Boa-Nova saltou para a Península Ibérica, a partir de Cartago. As intervenções do bispo Cipriano, nas questões eclesiais da Península, são ao modo duma Igreja-mãe [século III]. Mas o deserto do Saara foi durante séculos, conjuntamente com a selva africana, um muro histórico-geográfico que dificultou a penetração na África negra. Foi ao longo do Nilo que, decalcando a diáspora judaica [Atos 8, 26-39], o Evangelho penetrou fundo no coração da África negra, ou quase negra, onde na Etiópia formou um reino cristão que os Portugueses, muito mais tarde, demandaram em busca do fabuloso preste João, ao rodar o continente negro e ao abordá-lo na costa oriental depois de passarem o cabo da Boa Esperança. Esperança? Boa? Que procuravam os portugueses? Esperança especial das especiarias que legendavam o oriente, a mesma que levou Colombo por outro caminho e que chamou índios aos americanos… A Índia e a América fizeram esquecer a África, suprema ingratidão agora repetida por uma Europa demasiado preocupada consigo própria. Nem tudo foram misérias nestas aventuras brancas, nem é possível imaginar como poderia ser doutra maneira o contacto das tribos europeias com as tribos africanas, numa conjuntura em que o melhor andou sempre ao lado do pior.
Foi contudo a partir do século XIX que a evangelização da África teve os seus tempos áureos. Possuímos atos e atas dignos dos Atos dos Apóstolos e do Martirológio, sobre estes cem anos de evangelização da África negra. Neste 3 de junho ocorre o I Centenário dos Mártires do Uganda. Temos um testemunho ocular e fidedigno: “O heróico bando parou a alguns passos de mim. Estavam ligados uns aos outros, os jovens dos dezoito aos vinte e cinco anos. As crianças formavam um outro grupo. Apertaram-nos de tal maneira uns aos outros que só podiam caminhar com pequenos passos, chocando-se a todo o momento. Vejo a pequena Kizito a rir-se daquela posição bizarra, o rosto tão sereno, como se estivesse a brincar com os seus amigos. […] Passando diante de mim, os cristãos saudaram-me com o olhar, enquanto eu rezo Àquele que é a força dos mártires, para que derrame no coração destes jovens atletas as graças de eleição necessárias até aos santos, para perseverarem na confissão da Fé no meio dos tormentos. Sinto-me dominado pela emoção e as forças a faltar-me. Apoio-me contra a paliçada, rogando à Mãe das Dores que me dê forças para assistir a tudo aquilo de pé, como ela junto da Cruz” [in Le P. Siméon Lourdel, pp. 341-342. Argel, Maison-Carré, 1922].
Foram os primeiros mártires do Uganda. Padeceram sob o rei Mwanga. Eram Carlos Lwanga e vinte e um companheiros. Por estes dias, a Igreja ainda reconhecia rapidamente os seus mártires. As questões eram de princípio, ainda não eram de ponta. Ninguém os reivindica ideologicamente. Mas já era Teologia da Libertação, da mais pura: resistência passiva e pacífica contra a tirania.
A paz dos mártires venceu o Uganda, que chegou a chamar-se a Suíça africana. Depois, com as cobiças coloniais, neocoloniais e pós-coloniais, foi o desastre, extensivo a todo o continente, desde o corno de África até à África do Sul, onde tiranos & tiranetes cometeram e cometem tais e tantas loucuras, que o próprio equilíbrio ecológico está em grave perigo. África da fome? Quem diria? América Latina transportada para a África, onde “uma revolução já traz em si a necessidade doutra revolução”, terra queimada. Há perguntas terríveis que é preciso, à luz da experiência, não fazer: Quem acode a África? Se as potências e as dominações ouvirem este apelo, será mesmo o fim da África. Ora, ao fim de um século de evangelização, a Igreja é finalmente africana em áfrica e, assim como na América Latina, as Igrejas Africanas estão pujantes de vida e extraordinariamente conscientes da realidade africana. Ainda há muito pouco tempo os bispos de Madagáscar produziram um documento de análise sociopolítica como poucas vezes vemos nas Igrejas da Europa: em cima das questões! A África sairá do caos e sairá por si mesma — ou então não sairá, já que todas as ajudas só a têm prejudicado, tanto os apoios materiais como os ideológicos: os primeiros não chegam às vítimas, os segundos fazem-lhe perder a alma e multiplicam a miséria.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 31 | Voz Portucalense, 5 de junho de 1986
Imagem: pintura de Malangatana [1936-2011]