Se excetuarmos Israel, que é a religião da Lei, em que Deus diz e dita a sua vontade; se excetuarmos a religião Católica que é a religião da Fé; se fizermos um parêntesis ao Islão, que é um feroz monoteísmo de ricochete e ao retardador; se não contarmos com o Budismo que é uma filosofia mística e que não é uma religião propriamente dita; se possuirmos um bom conhecimento das religiões comparadas, sem grande dificuldade descobriremos em todas as religiões das Nações um elemento comum, que é uma completa indiferença em relação a dogmas e à moral. Para melhor esclarecimento adotámos aqui a expressão “religiões das Nações” [com maiúscula], porquanto se considera a designação bíblica como a mais própria em termos de História da Salvação e a mais adequada em termos de investigação étnica. As religiões das Nações, em oposição à religião da Lei [Israel] e à religião da Fé [Igreja], nas suas diferenças étnicas, próprias dum povo, duma língua, duma cultura; naquilo que têm em comum, são todas religiões da Natureza [incluindo o Homem].
Foi Israel que em religião trouxe a questão da Verdade que a Igreja levou às últimas consequências, em termos de salvação. O Islão fez dela uma guerra que acabou por arrastar os cristãos, inicialmente como defesa e depois como cruzada, violência que nunca mais acabou e que ia acabando com a Igreja… Depois do Mouro veio o Judeu; depois do Judeu, o Protestante; depois do protestante, a Inquisição — intolerância que a Igreja nunca conheceu antes, ao contrário do que muita gente diz e pensa, por confundir a Idade Média [muito tolerante, apesar de tudo] com a Idade Moderna, matriz das ideologias da intolerância chegadas ao nosso tempo com os dois maiores horrores do Nazismo e do Estalinismo. Apesar de Francisco de Assis, que foi o único que viu na cruzada uma cilada, que procurou diretamente o diálogo apostólico com o Califa e mandou os irmãos menores à procura do martírio no Norte de África, a Cristandade, que se fundava num equívoco, esboroou-se aos ventos da sua própria violência desencadeada.
Mas com as religiões das Nações nunca houve guerras por causa da questão da Verdade, exatamente porque não é uma questão religiosa, mas filosófica e teológica. Não dizem agora os fautores do neopaganismo que é preciso voltar aos mitos gregos, ao génio romano e às lendas germânicas? Não defendem os seus clubes de Paris que é preciso desligar-se definitivamente da herança judaico-cristã? Eles sabem bem que as religiões da Natureza são por natureza indiferentes à questão da Verdade e não são desestabilizadoras. Só não sabem é que “a Lei vinda por intermédio de Moisés” e “a Graça e a Verdade que nos vieram por Jesus Cristo”, apesar de atraírem o Ódio [aí está a Cruz a prová-lo] são a única saída [êxodo-Páscoa] para a unidade das Nações e para a aproximação dos homens em Povo de Deus onde “já não há Homem nem Mulher, nem Judeu nem Grego, nem Senhor nem Servo”. Isso não sabem, porque não acreditam; e preferem continuar a opor Atenas a Jerusalém. Só que a paz não será fruto das armas, não será a paz romana, nem a paz napoleónica, alemã, russa ou americana, mas a paz de Cristo “que não veio para trazer a paz, antes a guerra, o fogo”, pois “por causa dele haverá divisões, o pai contra o filho, a nora contra a sogra e, por causa do Filho do Homem, os piores inimigos do homem serão os seus próprios familiares”.
Muita gente ficou admirada quando os etnólogos nos vieram dizer que entre a Religião e a Moral não há relação. De facto, tanto a Religião como a Moral [dos costumes] nascem ambas numa cultura: a Religião polariza as obrigações de natureza ritual e as proibições de tipo tabu, enquanto a Moral estabelece o que é bem e o que é mal, o que parece bem ou o que parece mal, em termos de consciência profunda ou de saber viver [não faças aos outros o que não queres que te façam]. Em sociedades antigas, fortemente coletivas, a lei consuetudinária impõe o bem e proíbe o mal: as faltas contra esta moral são crimes. Aqui os pecados são de ordem religiosa, violação de tabus ou não cumprimento de ritos. O exemplo mais explicativo é este: os deuses cometem crimes como os mortais e os mortais desagradam aos deuses, cometendo pecados. Em sociedades modernas, fortemente individualistas, o estado cultiva uma moral positivista: o que a Lei não proíbe é permitido!… Mas seria um erro imaginar ausência de religião nas sociedades modernas. O homem é um animal religioso. Respira religião. Está-lhe na pele.
As massas europeias saíram da Igreja [?] quase [!] como entraram [o ponto de interrogação e o ponto de admiração dizem que o fenómeno é mais problemático do que parece…]. É toda a questão da evangelização dos Bárbaros e da sua catequização que se arrasta até aos dias de hoje. O culto? Também os religiosos da indiferença têm culto. Está-lhes estampado no rosto e nos gestos, nos seus cantos e na sua música, nos seus desejos e frustrações. Trazem os seus ídolos no coração antes de se prostrarem diante das suas imagens… O já chamado triste século XX é excessivamente religioso, e “o século XXI será religioso, ou não será!”, como disse André Malraux.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 6 | Voz Portucalense, 5 de dezembro de 1985

Imagem: “Escola de Atenas” [1509-1511] | Raffaello Sanzio