Liberdade, palavra mágica. Tabu da infância, sonho e revolta da juventude, coisa inútil para o homem feito, desinibição escangalhada e desconcertante dos velhos que já não dizem nem fazem coisa com coisa quando fazem ou dizem o que lhes vem à cabeça. ‘Na corda bamba’ de Saul Bellow, a liberdade atrai e mete medo como o abismo. Os sensatos, feitas as primeiras experiências em tão má companhia, fogem dela como quem foge da tentação. A personagem principal de ‘Na corda bamba’ ia estragando a sua vida. Quando se libertou da liberdade, respirou aliviado:
“Já não sou senhor de mim,
sinto-me grato por isso,
estou entregue noutras mãos,
liberto da autodeterminação,
cancelada a liberdade.
Hurrah pelo horário estipulado!
E pela supervisão do espírito!
Viva a arregimentação!”
[Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1976, p. 193].
Em relação às massas em revolta e nas revoluções, a liberdade, em jogo ou na liça, mal conseguida, logo se mete pela treva do terror, a que a lei vem pôr cobro na hora de cobrar o preço duma bebedeira colectiva consentida pelos patronos ou herdeiros da revolução. “Toda a revolução devora os seus filhos”, conclusão que qualquer anarca de meia tigela arrasta para o moinho da revolução perpétua. Numa sociedade perfeita ela é coisa inútil, já que ali toda a gente é feliz e “os povos felizes não tem história”. No ‘Admirável mundo novo’, de A. Huxley, a liberdade é inimiga da felicidade, pois é portadora de sofrimento. Nas sociedades planificadas não existe o direito à felicidade, só a obrigação de se ser feliz…
Coisa curiosa: toda esta dialéctica somente foi possível pôr-se em países passados pelo Evangelho. Não se põe no Japão. Nem na China, apesar das aparências. “Vinho novo em odres velhos”. O mundo está rebentando por todas as costuras com o remendo de pano novo. Razão tinha o Diabo para afirmar: “Que queres de nós, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder?” [Lucas 4, 34]. Todos estes séculos de Evangelização foram tempo de sofrimento e “dores como de parto na expectativa da manifestação dos filhos de Deus”. Ainda há bem pouco tempo não faltavam cristãos progressistas para zombarem da frase medieval do ‘Salve Regina’: “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”. Supõe-se que não zombavam das lágrimas, a não ser que imaginassem alguma operação cirúrgica futura para suprimir o apêndice das glândulas lacrimais. Zombaram do vale de lágrimas! No ‘Admirável mundo novo’ não há lágrimas, e os vales de lágrimas reduzem-se a algumas reservas onde indígenas irrecuperáveis ainda estão sujeitos ao sofrimento. No ‘Admirável mundo novo’ o consumo diário do Soma — símbolo dos maravilhosos progressos deste século e do casamento das duas sociedades novas: a americana [de Ford], sociedade superdesenvolvida, com a soviética, sociedade superplanificada — garante a maior felicidade donde foram excluídos o sofrimento e a liberdade, inimiga da felicidade.
Estes monstros têm os dias contados, como escreveu o Livro do Apocalipse, não como quem adivinha o futuro, mas sobretudo como quem possui a experiência do passado. Todos os monstros têm vida breve. Por mais que nos assustem, estes nasceram ainda há alguns dias e já estão meio moribundos.
Todas as liberdades pessoais ou comunitárias historicamente conseguidas acarretaram grandes sofrimentos. E, uma vez conseguidas, trouxeram mais problemas do que aqueles que resolveram. O sofrimento não é inimigo da felicidade. Não há ação sem paixão. Se isso acontece com estas pequenas liberdades ou pequenas libertações… o que não será com a liberdade dos filhos de Deus?
Há direitos que nos reconhecem. Finalmente reconhecem. Os Direitos do Homem. Mais ou menos. Mas a liberdade dos filhos de Deus? Não a reconhecerão, mesmo nas mais avançadas democracias do mundo. Quanto mais livres menos a reconhecerão. “Mesmo na Igreja” — diz o padre Lebret — “é preciso estar preparado para sofrer perseguição até da parte dos santos…”. Que o diga Joana d’Arc. Que o diga Francisco de Assis. isto só para falar de antigos. E, contudo, desde acreditar até amar, ninguém o pode fazer sem a liberdade maior, a dos filhos de Deus. “A Verdade vos fará livres!”. A liberdade da Verdade, desde a procura ao encontro. Jesus sabia o que dizia. Que sofrimento diante duma página em branco! Que sofrimento diante dum dia em branco! “Digam-me o que tenho que escrever?!”. “Digam-me o que tenho que fazer?!”. “Volte a lei!”. Diz Jesus: “Basta-te a minha Graça!”.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 26 | Voz Portucalense, 1 de maio de 1986
Pintura: “Juízo Final”, Capela Sistina [1535-1541] | Michelangelo [1475-1564]