Vem aí ‘The Mission’. Espera-se que venha. Tem todos os títulos do Festival de Cannes. Vai pôr toda a gente a pensar, os católicos também, eles sobretudo. A pensar e a informar-se. Claro que não é um simples filme, por mais excelente que seja, que põe os católicos portugueses a rever o seu messianismo, sebastianismo de trazer por casa. Quanto aos espanhóis, “es diferente”… o tamanho geográfico e a sua transformação calma — quem diria? — pode não livrá-los de arrogância, mas do complexo da pequenez talvez os livre. História complexa que ainda vai fazer correr rios de tinta, com muitas penas ainda, com muitas irritações jacobinas sem dúvida e com muitos católicos complexos de culpa também…
Por aqueles dias, atiraram-se todos aos Jesuítas. E se os Jesuítas não fossem jesuítas, seriam hoje considerados precursores [como Las Casas e Thomas More] de Marx & Lenine, de Sandino e de todas as frentes da Revolução e do Progresso… Progressistas os Jesuítas? Pombal vai cair do pedestal e Voltaire vai estremecer no túmulo. Cândido, que na imaginação voltairiana deu a volta ao Mundo, já não sabe nada de nada. “O governo de ‘los padres’ é uma coisa maravilhosa. ‘Los padres’ ali têm tudo e os povos nada. É a obra-prima da razão e da justiça. Não há nada de mais divino que ‘los padres’, que fazem aqui a guerra ao rei de Espanha e ao rei de Portugal e que na Europa confessam esses reis”. É uma citação de ‘Candide, ou l’Optimisme’, o célebre livro de Voltaire que faz parte da panóplia de todos os adversários da Igreja, clássico de todos os catecismos e almanaques anticlericais. A quem é que Voltaire pretendia agradar? Não aos jesuítas! Aos reis? Quem diria?! Aos povos? Não aos índios Guaranis que, uma vez reduzidas a nada as suas ‘reduções’, voltaram à escravidão e à miséria sob e cobiça dos colonos portugueses — que só queriam o ouro — e de colonos espanhóis que só pretendiam um acordo fronteiriço entre Portugal e Espanha para os lados do rio Paraná. Há destes paradoxos históricos. Voltaire a defender o direito divino dos reis e os maçónicos portugueses — republicanos e liberais — a levantarem uma estátua a Pombal, o símbolo português do despotismo esclarecido.
Tirante estas notas à margem e o valor muito relativo e discutido dum simples filme, por melhor que seja, ‘The Mission’ — ou o seu realizador [o britânico Roland Joffé] — põe hoje uma questão que tem muito e ver com os progressos teológicos da nossa Esperança. Está em causa sobretudo a moderna Teologia da Libertação. ‘The Mission’ traz para o debate uma acha apreciável.
A Missão tem as suas tentações e não há ninguém mais predisposto a cair nelas do que aqueles que, na Igreja, fizeram a experiência dum mundo diferente no meio do Mundo. Tentação de transpor e de alargar para o plano social e político — domínio da Lei e dos Direitos do Homem — a comunhão de pessoas e de bens. Exatamente quando todas as esquerdas de todos os azimutes andam carregadas de dúvidas sobre o ‘Decreto da Felicidade’, não faltam monges e religiosos para transpor — nestes dias, em termos políticos — para o plano económico-social as dedicações comunitárias da Graça. Voltamos a Tolstoi? Os cristãos vão substituir os Comunistas? O paternalismo socialista burguês vai ter os seus sucessores no paternalismo místico-clerical? As leis vão ser substituídas pelas regras? A sociedade de secular vai passar a regular? Ao vermos o fervor dos sandinistas europeus [os da Nicarágua estão sob o fogo do julgamento], até parece que teremos em breve entre nós a experiência das ‘reduções’, sucedendo a das comunas. Vale e pena dar a vida pela libertação dos oprimidos, mas não para cair noutra opressão. A vida comunitária [de pessoas e de bens em comunhão] só é possível a dois níveis, a da Carne e do Sangue [em família, quando muito em tribo] e a da Graça [pela decisão livre e sempre revogável de pôr tudo em comum e de viver em comum]. O primeiro nível tem as suas opressões e misérias, suportáveis num grande amor [enquanto durar] ou por necessidade. O segundo nunca pode ser do domínio da Lei e os conventos e mosteiros já fizeram a amarga experiência, sempre que as regras se tornaram lei, e se desviaram da Graça e da atitude livre e oblativa, sempre que se tornaram incapazes da Oferenda…
Foi a tentação dos Jesuítas nas ‘reduções’ sul-americanas; e quando se tornaram comerciantes por amor das suas missões na ilha de Martinica. A maior dedicação está sujeita às maiores tentações. Não foi por simples imaginação que Mateus enquadrou as tentações de Cristo logo no princípio do seu Evangelho. Quanto aos ‘voltaires’ — a Igreja também os tem —, historicamente está demonstrado, sobretudo em História de Salvação, que o cinismo não compensa.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 44 | Voz Portucalense, 9 de outubro de 1986

Imagem: Jeremy Irons | ‘The Mission’ [1986]