Não que Charles Maurras tenha dado ou recebido alguma lição. Graças à incompreendida posição de Pio XI, ele não pôde acabar de dar a sua lição aos católicos. Quanto a aprender, Maurras não aprendeu nada com os anátemas de Pio XI. Apesar de ter assinado uma carta de submissão — depois dos contactos secretos tidos com Ottaviani por ordem de Pio XII, que desejava pôr ponto final numa questão que tanto agitou os católicos —, o autor do Maurrasismo até nisso se mostrou fiel aos seus princípios: “Politique d’abord” [“A política antes de tudo”]. Nós é que parece que ainda não aprendemos com a lição, pois facilmente nos deixamos utilizar e não recusamos, tão prontamente quanto seria desejável, ser tornados bandeira, brasão ou adjetivo de tantas atitudes e ideologias políticas. Perante a dificuldade de ser aceites neste século como substantivo, já ficamos todos contentes que nos aceitem como adjetivo. Reinos cristãos, democracias cristãs, socialismos cristãos. Desde Maurras que estão ainda por estudar os nossos apegos, nos países católicos, às diversas correntes ideológicas e políticas, de tipo maximalista e irredutível, das variadas cores fortes com que se afrontaram os homens desta geração. Maurras acabou mal e Pio XI acabou bem. Charles Maurras, comprometido com o regime de Vichy a partir de 1940, acabou — depois da guerra — por ser condenado como colaboracionista a prisão perpétua, em 1945, e morreu em 1952 sob residência vigiada. Quanto a Pio XI, o futuro deu-lhe razão, quando condenou a L’Action Française, que chegou a ser o jornal mais lido nos seminários, presbitérios e conventos, e que tantas simpatias episcopais havia atraído. Maurras não era cristão? De facto não era. Sempre se afirmou agnóstico. Mas não foi por isso que Pio XI o condenou. O que o papa condenou no maurrasismo foi a utilização que ele fez da Igreja Católica.
Maurras é um extremista das direitas para quem a Igreja é naturalmente e historicamente uma aliada. “O catolicismo da L’Action Française é um catolicismo descristianizado” e só lhe interessava como força cultural e política. Vejamos a passagem duma carta do marechal Lyautey, ferido por drama de consciência nas suas convicções maurrasistas: “É inadmissível que esta noite eu esteja na minha querida igreja, de joelhos diante do sacramento em que eu não acredito dogmaticamente, mas que simboliza mesmo assim aquilo em que eu acredito, tudo o que constitui a minha razão de ser e de agir na minha vida social. […] Eu sou aconfessional, mas estou certo de ser da milícia de Deus contra Satã, para empregar estes termos. Indigno-me e revolto-me contra o Vaticano que não quer a minha aliança, que recusa o meu concurso. Com esta atitude, o Vaticano vai lançar para a revolução os melhores daqueles que só pediam para combater ao lado da Igreja…” [carta dirigida a Wladimir d’Ormesson].
Temos assistido a um duplo tipo de utilização, conforme o sinal político. Para uns, da igreja só lhes interessa o seu catolicismo, um catolicismo descristianizado; para outros, da Igreja só lhes interessa o seu cristianismo descatolicizado. Que o façam; uns e outros, uns ou outros, é com eles e com o que consideram ser as suas raízes ou autojustificações históricas. Quanto a nós, basta de nos deixarmos utilizar e aos nossos meios de comunicação eclesial. Esse foi o erro de Maurras. Para nos fazer entrar na sua cruzada, utilizou tudo e todos, ao ponto de hoje se saber que conseguiu — sob Pio X — a indigitação de muitos bispos e a colaboração no seu jornal de escritores como Dupouey, amigo de Péguy, ou como o jovem filósofo Maritain e Bernanos, nos seus princípios…
Ia arrastando a Igreja de França, se não fora Pio XI. Há, também, entre nós, quem nos queira arrastar a coberto dos nossos medos ou das nossas exigências. Abusando dos nossos apegos, muitos deles legítimos, não têm rebuços em nos utilizar como adjetivo, apesar de há muito terem renegado os nossos substantivos, a substância da fé e da nossa esperança.
Uma vez arrastados, facilmente arrastados nas conjunturas politicamente favoráveis, quem de nós resistirá às torrentes do ódio desencadeado? Basta uma crise, uma qualquer fratura emocional, e eis-nos uns contra os outros, cada um com os seus santos embandeirados, transpondo mesmo para dentro da igreja os nossos ódios políticos. É sempre o amor de qualquer coisa que justifica todo e qualquer ódio. A lição de Maurras. Será que ainda não aprendemos?
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 35 | Voz Portucalense, 3 de julho de 1986
Fotografia: Maurras | Les fêtes de Jeanne d’Arc à Paris