É lamentável que deixemos os nossos bispos sozinhos na luta contra a moderna gnose e deixemos a defesa da verdade nas mãos de quem a usa para defender situações sociais iníquas. É mau para os bispos, é mau para a verdade e é mau para nós. Qualquer um facilmente lhes atirará pedras e os acusará de santa aliança com os inimigos dos pobres e os meterá na sagrada família onde Mammon é o pai.
Afrontados hoje com uma nova gnose, de sinal contrário em relação à velha gnose, é preciso permanecer atentos e vigilantes à questão de fundo e aos perigos de sermos arrastados para posições e atitudes completamente opostas à Fé.
“O erro não se mostra por si mesmo… e parece mais verdadeiro que a própria verdade. A esmeralda é uma pedra preciosa, mas confrontada com um pedaço de vidro artisticamente trabalhado é cópia da joia verdadeira, necessita de um perito que denuncie a fraude. Não queremos que certos cristãos sejam seduzidos como ovelhas por lobos, por não os reconhecerem sob a veste de cordeiros”.
Ireneu de Lyon, bispo e mártir, escreveu estas palavras em 180 [no prefácio de «A Gnose de Nome Mentiroso»], quando empreendeu desmascarar os gnósticos, a primeira grande heresia com que se bateu a Igreja. Durante muito tempo julgou-se que aquele bispo exagerava. Até que, em 1945, foi feita numa cidade do Alto-Egito — Nag Hammadi — a estrondosa descoberta duma biblioteca gnóstica inteirinha, cujas obras só em 1979 foram integralmente traduzidas e publicadas. Sabe-se hoje que as igrejas gnósticas chegaram a estender-se ao ponto de, a determinada altura, ultrapassarem a Igreja Católica. De mãos nuas, unicamente com a força da Palavra e do Testemunho, sem poderes centralizados e hierarquizados, só com a saúde do seu corpo comunitário, sem a proteção do braço secular de príncipes cristãos que ainda não tinha, a Igreja enfrentou durante dois séculos a gnose de nome mentiroso e venceu-a. Onde estava o perigo da gnose? Exatamente no esplendor estonteante da sua ciência [gnose] e na eficácia do seu método de luta libertadora. Explicava tudo e tudo resolvia. A primeira grande tentação totalitária.
Coisa curiosa, quanto mais conhecemos a antiga gnose, tanto mais percebemos que a moderna gnose não passa do mesmo sistema virado ao contrário. O que foi o idealismo da filosofia alemã senão uma construção gnóstica gigante? O marxismo não lhe adaptou integralmente a dialética, aplicando-a em voo picado ao materialismo histórico?
A afirmação central da velha gnose consistia em demonstrar que o Mundo é uma alienação de Deus, perfeitamente de acordo nisto com as religiões das nações e das filosofias, que sempre olharam esta existência como um castigo. Lembrem-se das tragédias gregas, do cárcere ou da caverna de Platão, do fatalismo romano, do animismo ambiente e do espiritismo do tempo, do dualismo persa, do hinduísmo e do budismo, etc. Perante o pessimismo geral levantado em sistema de pensamento e de ação pelos gnósticos, a Igreja defendeu o otimismo da Criação e, de caras, sem medo e às claras, proclamou com todo o apoio dos livros do Antigo Testamento e da Encarnação, e da Ressurreição de Jesus Cristo, que o Mundo, a matéria, o corpo e no corpo o sexo, são realidades boas. Face à velha gnose, que rasgava o Antigo Testamento e que declarava mau o Deus do Antigo Testamento que criou este Mundo, que é mau, A Igreja defendeu o Mundo e não aceitou que mexessem nos Evangelhos para os reelaborar com uma leitura gnóstica. Evidentemente que destas lutas, cuja envergadura poucos imaginam, ficaram muitas feridas históricas. Não há hoje ainda tantos cristãos sempre prontos a condenar o Mundo, a desvalorizar a matéria e a minimizar o corpo e no corpo o sexo? A maneira como alguns falam das realidades temporais e do casamento, do celibato e da virgindade, mais parece estilo gnóstico do que doutrina católica.
Mas, voltando à moderna gnose, já começam a ver-se por aí certas teologias da Libertação, acompanhadas por leituras materialistas do Evangelho, de toda a Bíblia e da História da Igreja. Enquanto a ‘intelligensia’, um pouco por toda a parte, abandona a moderna gnose, será que é agora que muitos cristãos se vão deixar seduzir pela EXPLICAÇÃO e RESOLUÇÃO científica do mundo? Gnose de sinal contrário, expressão dum orgulho danado, a ideologia diz que “Deus é a alienação do Mundo”. Os cristãos podem adotar um sistema que também nega a Criação?


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 4 | Voz Portucalense, 21 de novembro de 1985

Imagem: “El aquelarre” [1821-1823] | Francisco de Goya