Santo Ireneu e Teilhard de Chardin são dos nomes que é agradável juntar, ambos nos limiares — o primeiro do século II, o segundo do século XX — de grandes desenvolvimentos teológicos. Foram dois luminares, verdadeiros doutores da Igreja, escribas do Reino de Deus que souberam tirar do Tesouro coisas novas e antigas — ‘nova et vetera’ — e que guiaram a inteligência da Fé através dos meandros das modas intelectuais e das tentações espirituais [as piores de todas!] do seu tempo.
Defensores da Criação, da Encarnação e da Ressurreição, contra a gnose de nome mentiroso, eles aí estão com os seus escritos nestes dias de Páscoa a alimentar-nos a Esperança com a mais autêntica doutrina da Fé. “A Fé sem obras é morta!”. Mas as obras da Fé sem a esperança duma Ressurreição, por mais amor que lhes infundamos, quedar-se-ão pelo caminho, pesadas de chumbo sob um céu fechado?…
“A divinização do nosso esforço pelo valor da intenção que se lhe põe, infunde uma alma preciosa em todas as nossas ações; mas não dá ao seu corpo a esperança duma ressurreição. Ora é esta esperança que nos é precisa para que a nossa alegria seja completa. Já é muito podermos pensar que, se amamos a Deus, alguma coisa nunca será perdida da nossa atividade interior, da nossa ‘operatio’. Mas o próprio trabalho das nossas mentes, dos nossos corações e das nossas mãos — os nossos resultados, nossas obras, nosso ‘opus’ — não será ele também, de alguma maneira, eternizado, salvo?… Oh! sim. Em virtude da pretensão, Senhor, que tu mesmo colocaste no coração da minha vontade, sê-lo-á! Eu quero, tenho necessidade que assim seja. Quero-o, porque amo irresistivelmente o que o vosso concurso permanente me permite cada dia tornar uma realidade. Este pensamento, este aperfeiçoamento material, esta harmonia, esta nuance particular de amor, esta delicada complexidade dum sorriso ou dum olhar, todas estas belezas novas que aparecem pela primeira vez, em mim ou em torno de mim, sobre o rosto humano da Terra, eu as acaricio como filhos, que eu não posso crer que, na sua carne, morrerão completamente. Se eu acreditasse que estas coisas fenecem para sempre, alguma vez lhes teria dado vida? — Quanto mais eu analiso, mais eu descubro esta verdade psicológica que nenhum homem levanta um só dedo pela menor obra sem ser movido pela convicção, mais ou menos obscura, que ele trabalha infinitesimalmente para a edificação de algo definitivo, isto é, a Tua própria obra, meu Deus!” [Teilhard de Chardin, «Le Milieu Divin», pp. 39-40].
O desprezo do Corpo não é cristão, nunca o foi mesmo quando se apresentou vestido com o manto da Cruz de Cristo. Herética tradução a que verteu o termo bíblico de carne no corpo-das-corrupções físicas e morais!… O termo bíblico carne nunca significou o mal de que sofremos. “O Verbo se fez Carne”. E a Carne se fez pão. Valha-nos Santo Ireneu no meio de todas estas gnoses infiltradas em tantas espiritualidades chamadas católicas!
“Como podem os gnósticos dizer que a Carne caminha para a corrupção e não participa da Vida, quando sabemos que ela é alimentada pelo corpo e pelo sangue do Senhor? Que eles mudem a sua maneira de pensar, ou então abstenham-se de celebrar a Eucaristia… Assim como o pão que vem da terra, depois de ter recebido a invocação de Deus, já não é pão ordinário, mas eucaristia, constituída por duas coisas, uma terrestre e a outra celeste, assim os nossos corpos que participam na Eucaristia não são mais corruptíveis, pois participaram da Ressurreição” [Ireneu de Lyon, «Contra a Gnose de Nome Mentiroso», IV, 18, 5].
Não temos hoje obrigação de ter do Corpo uma noção mais vasta e mais profunda do que a dos limites físicos do espaço em que nos sentamos ou nos deitamos? A esperança duma Ressurreição é a base de todos os empenhamentos… cristãos.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 21 | Voz Portucalense, 26 de março de 1986
Pintura: “Les Disciples Pierre et Jean courant au sépulcre le matin de la Résurrection” [1898] | Eugène Burnand [1850-1921].